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UNESCO: um processo opaco e recomendações problemáticas para a regulação das plataformas digitais

A produção de um documento que siga pelo caminho que já está delineado põe o exercício dos direitos humanos em risco, especialmente nos países da “maioria global”, os mais ávidos por contar com guias desta natureza.

CC:BY (Lucía Boiani)

No final de 2022, e de forma bastante surpreendente, a UNESCO iniciou um processo de consulta para a criação de um guia para a regulação das plataformas digitais. Em novembro daquele ano, a Derechos Digitales foi uma das organizações latino-americanas que teve a oportunidade de participar de uma consulta sobre o documento inicial. Este continha diferentes aspectos problemáticos e fizemos várias observações a respeito. No entanto, pouco antes das festas de fim de ano, a UNESCO iniciou um processo de consulta pública sobre uma segunda versão do documento, disponível apenas em inglês e francês.

O prazo para a realização de comentários foi dia 20 de janeiro de 2023. A UNESCO convocou uma conferência global, que acontecerá do dia 21 a 23 de fevereiro na sua sede em Paris, e anunciou que uma nova versão do documento será disponibilizada antes do evento.

O primeiro aspecto que chama a atenção é a pressa e a opacidade com que se tem atuado e que não condiz com a maneira como outros processos de produção de diretrizes relativas à internet foram desenvolvidos. Por exemplo, a construção dos Indicadores de Universalidade da Internet (Princípios R.O.A.M.) foi acompanhada de um amplo processo de participação aberta de várias partes interessadas. Por sua vez, a conceitualização do documento “Por uma internet confiável – Regular as Plataformas Digitais de Informação como um Bem Comum” foi acompanhada por um grupo de especialistas sobre o qual há pouca ou nenhuma informação disponível.

Consideramos que desde o início o processo atual apresenta falhas que dificultam a participação efetiva da sociedade civil organizada. Além disso, consideramos que a produção de um documento que segue um caminho predeterminado põe em risco o exercício dos direitos humanos. Isso ocorre, em especial, nos países da “maioria global”, que são os mais ávidos por contar com guias dessa natureza, provenientes de organismos internacionais para a tomada de decisões sobre suas regulações internas.

Qual é a nossa preocupação?

Além de expor a pouca abertura e transparência do processo, nós realizamos várias críticas fundamentais nos comentários feitos ao documento compartilhado durante a consulta regional.

Em primeiro lugar, há uma falta de definição em relação aos objetivos do documento. Na versão pública, o esboço indica que seu objetivo seria a “orientação de alto nível para os Estados Membros e outras partes interessadas relevantes que estão considerando como regular o conteúdo on-line”. No entanto, ao realizar uma leitura cuidadosa do artigo, descobrimos que ainda há uma oscilação entre estabelecer padrões e fornecer diretrizes, de modo que o objetivo continua sendo duvidoso.

A proposta tem uma carência fundamental relacionada à conceituação do que é proposto. Existem problemas de ausência de conceitos-chave. Por exemplo, não há definição sobre o que se entende por “informação como um bem público”. Ao mesmo tempo, é difícil encontrar conexões com experiências anteriores da própria UNESCO, por isso não é possível compreender como o documento serve para confirmar esse conceito de forma evidente. Nossa preocupação é que este conceito alude a uma visão asséptica do espaço informacional, incompatível com o pluralismo e a diversidade, que são partes essenciais da liberdade de expressão.

Por outro lado, não há definição específica sobre qual seria o conteúdo potencialmente prejudicial à democracia e aos direitos humanos que a proposta busca combater, apesar de reconhecer a falta de consenso global sobre a definição do que constitui um conteúdo potencialmente prejudicial.

Tal como apresentado, o documento promove a censura prévia por parte das plataformas e isso é incompatível com o artigo 13 da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos. Definir os conceitos é muito importante na tarefa de regular as plataformas. No entanto, o rascunho mais recente indica que essa conceituação ainda está sendo elaborada e será adicionada na próxima versão.

Também se perde a oportunidade de abordar problemas mais sistêmicos relacionados ao modelo de negócios baseado na exploração de dados pessoais das grandes plataformas, sem atacar o problema de fundo, estratégia regulatória que Shoshana Zuboff qualificou como insuficiente, pois “os danos sociais são isolados e tratados como crises sem sentido”. 

As recomendações devem apontar para as causas que produzem determinados efeitos sobre a moderação de conteúdos, algo que a proposta atual não contempla, alegando a complexidade da coordenação com outros campos regulatórios.

Recomeçar com um processo confiável

Algumas organizações da sociedade civil, como a Article 19, e redes de múltiplas partes interessadas, como a Global Network Initiative (GNI) — da qual a Derechos Digitales é integrante — publicaram posicionamentos que criticam o processo e o conteúdo da proposta da UNESCO. Consideramos que, devido a este procedimento turbulento e à falta de definição do que a UNESCO e seus países membros querem fazer com isto, não é possível aprovar nenhum documento ou declaração na conferência que começa em poucos dias em Paris.

A Derechos Digitales recomenda não apressar o processo, pois é necessário realizar uma consulta significativa e com as múltiplas partes interessadas.

Nossa principal recomendação é que a proposta se concentre onde a sua contribuição poderia ser mais útil, segundo os padrões internacionais de direitos humanos e as diretrizes de implementação fornecidas pelos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos (POs) da Organização das Nações Unidas (ONU). Desta forma, o documento deve concentrar-se em aspectos como obrigações de transparência para as plataformas; processos de reclamação expeditos e regidos pelo princípio do devido processo em relação a decisões de moderação de conteúdo; diligência na avaliação e mitigação de riscos das plataformas; mecanismos de reclamação, revisão e reparação em caso de decisões errôneas, como indicado, por exemplo, nos relatórios do Al Sur sobre responsabilidade dos intermediários e moderação de conteúdo em uma perspectiva latino-americana.

Para conseguir construir uma internet confiável, há anos sabemos que os processos de discussão, regulação e padronização também devem ser confiáveis, abertos e transparentes, com uma abordagem de múltiplas partes interessadas e uma participação significativa da sociedade civil.

A UNESCO tem em suas mãos todos os elementos para contribuir positivamente para esse ambiente, resta apenas colocá-los em prática de maneira responsável, com um processo transparente, com instâncias adequadas e tempo necessário para os diálogos.