Guerra comercial

América Latina frente à pressão comercial dos Estados Unidos: impactos e perspectivas para uma agenda de desenvolvimento baseada em direitos humanos

Vemos nos últimos anos um discreto avanço em direção a um consenso sobre a necessidade de reequilibrar as relações globais de poder em matéria de tecnologias. O conceito de “soberania tecnológica” ganhou destaque nos discursos de autoridades governamentais e internacionais. Ao mesmo tempo, surgiram novas oportunidades para políticas fiscais que permitem compensar os países pela extração de seus dados por parte de algumas poucas empresas. Mesmo que algumas dessas reivindicações se restrinjam ao discurso (e os países continuem oferecendo benefícios às mesmas empresas para a exploração de recursos a nível local), a aliança entre as Big Techs e o governo de extrema direita dos Estados Unidos tem mobilizado todos seus esforços para fazê-las recuar.

CC:BY (Francisca Balbontín)

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Passaram-se pouco mais de seis meses desde a posse de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos (EUA), marcada pela presença destacada dos CEOs das empresas de tecnologia mais importantes do mundo ao lado do mandatário. Desde então, houve anúncios e sinais confusos relacionados com a sua política internacional e tecnológica.

Na arena multilateral, além de abandonar programas focados na promoção de sua agenda de “liberdade na internet” que privilegiava a desregulamentação do setor, a diplomacia estadounidense passou a rever compromissos antigos em matéria de governança da internet e bloquear consensos históricos relacionados à aplicação dos direitos humanos às tecnologias. Por outro lado, o governo Trump incorporou diretamente à sua estratégia comercial o discurso das Big Tech, segundo o qual qualquer tentativa de limitar seu domínio monopolista representaria uma “barreira não tarifária” e, como tal, uma ameaça aos interesses nacionais dos EUA.

A atual política comercial dos EUA consolida uma tendência de crescente abandono da Organização Mundial do Comércio (OMC) como espaço de negociação multilateral. Com isso, Trump se escapa da necessidade de convencer um conjunto de países (cada vez mais conscientes da relevância da agenda digital para o desenvolvimento económico) a manter antiquadas limitações à imposição de tributos ao comércio eletrónico, entre outras.

No caso latino-americano, episódios como a imposição de tarifas ao México – seguida de sucessivas negociações em troca do fim das “barreiras comerciais não tarifárias” – e a discussão pública com o presidente colombiano, que adiantou a ameaça de imposição de novas tarifas (posteriormente revistas após um acordo entre os países), deram o tom das novas regras do jogo. Ambos os casos revelam acordos e concessões pouco transparentes que podem resultar em impactos graves aos direitos humanos de suas populações.

A nova cara de uma velha estratégia

O contexto atual é marcado por altos níveis de instabilidade e uma intenção muito evidente de favorecer interesses próprios com poucos benefícios para a região. À redução das políticas de cooperação internacional que afetam diretamente a população latino-americana, somam-se ameaças de intervenção direta que há muito não eram vistas à luz do dia. No entanto, o uso de políticas comerciais para pressionar países a adotarem medidas que beneficiem a indústria tecnológica estadounidense está longe de ser algo novo.

O Relatório “Special 301”, produzido pelo Escritório do Representante Comercial dos EUA (USTR, na sigla em inglês) e muito conhecido no ativismo pelos direitos digitais, tem sido uma das principais formas de pressão exercida sobre os países da região. O documento gera uma lista de países que supostamente falham em proteger os direitos de propriedade intelectual das empresas americanas.

Já em sua primeira versão, publicada em 1989 após a reforma que incorporou a figura ao marco normativo estadounidense, Argentina, Chile, Colômbia e Venezuela apareciam em uma “lista de atenção” por manterem práticas consideradas “preocupantes” em matéria de propriedade intelectual. O Brasil e o México, por sua vez, eram listados como países cujas práticas mereciam “atenção especial”, mas que, segundo o documento, não seriam investigados por terem feito progressos em negociações bilaterais ou multilaterais recentes. Entre 2005 e 2018, Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Guatemala, México, Paraguai, Peru e Venezuela figuraram no relatório como países de “atenção” ou “atenção prioritária”. A maioria continua presente na edição de 2025. O Uruguai foi incluído no relatório de 2005 e depois deixou de aparecer nas listas.

O título do documento faz referência à chamada “Seção 301” da legislação comercial estadounidense de 1974, que permite a investigação unilateral de práticas comerciais consideradas prejudiciais aos interesses dos EUA por parte do USTR, e a adoção de medidas coercivas para pressionar os países a abrirem seus mercados. As investigações baseadas na Seção 301 podem ser iniciadas tanto por iniciativa própria do USTR, como a partir de solicitações do setor privado.

O contexto da aprovação da Seção 301 nos lembra o cenário regional atual. Segundo o ex-diplomata brasileiro Regis Aslanian, o mecanismo reflete uma política de “autoritarismo comercial” adotada pelos EUA em um período em que sua economia enfrentava riscos de perda de hegemonia. Ele conta que, naquela época, o Brasil buscava consolidar uma indústria nacional e passou por investigações decorrentes da Seção 301 em 1985 e 1987 devido a supostas barreiras ao comércio e aos investimentos americanos em setores que incluíam o farmacêutico e o tecnológico. O caso exemplifica em parte como foram construídas as relações de dependência tecnológica que persistem até hoje nos países do Sul Global.

A nova investigação aberta contra o Brasil no âmbito da Seção 301 demonstra que o instrumento ainda é relevante para dar um ar de legalidade à imposição de sanções arbitrárias contra países. No entanto, o governo Trump não esperou seu resultado para começar a penalizar o Brasil. Ao contrário: a comunicação sobre a imposição de tarifas de 50% aos produtos brasileiros incluiu a indicação da abertura da investigação, que ocorreu dias depois e continua sem conclusão.

Já em relação ao “Special 301”, seu foco tem sido a tentativa de pressionar para a adoção de medidas de criminalização da “pirataria”, bem como outros mecanismos que impeçam a sua circulação, como a imposição de barreiras tecnológicas, a obrigação de entrega de informações por parte dos provedores de internet, entre outros, muito bem exemplificados nos capítulos latino-americanos da sua última versão. Este tipo de medidas tem sido fortemente impulsionado pelo lobby das empresas de produção de conteúdos ao longo das últimas décadas. No entanto, no cenário atual, elas se misturam com a pressão contrária em favor da desregulamentação: a bandeira da moda do lobby tecnológico norte-americano, como se vê no caso da investigação contra o Brasil.

Um jogo com poucos vencedores

O tipo de pressão imposta à soberania dos Estados latino-americanos pelos EUA no momento atual evidencia a disparidade de poder nas negociações, onde se espera a entrega de concessões em troca da simples manutenção do status quo. Não se trata de uma situação exclusiva da América Latina: na Europa, onde diferentes políticas de regulamentação das tecnologias têm estado no centro da disputa, o resultado das negociações foi pouco explícito em relação a suas implicações para o futuro das normativas europeias sobre o tema. Além disso, uma nota oficial da Casa Branca inclui entre os acordos o fim das discussões europeias sobre a imposição de impostos às grandes plataformas digitais (as chamadas network fees), a intenção de rever “barreiras injustificadas ao comércio digital” e um acordo para manter em zero as taxas alfandegárias para transmissões eletrónicas.

Ainda assim, alguns países estão em melhor posição para negociar. O caso do Brasil é um exemplo disso, mas também de uma situação em que uma das exigências impostas não deixa outra opção: a imposição de tarifas de 50% veio acompanhada de uma exigência de intervenção na autonomia do Poder Judiciário, impossível de ser atendida por qualquer governo minimamente comprometido com a democracia. A vantagem do país é que o seu comércio internacional é relativamente diversificado, com apenas 12% do seu Produto Interno Bruto dependente dos EUA. Mesmo assim, o impacto das tarifas em vigor desde 6 de agosto é significativo para alguns setores econômicos, o que mantém o governo interessado em negociar, inclusive para discutir medidas relacionadas ao setor tecnológico.

Embora apareça de forma mais sutil na primeira comunicação de Trump, onde se falava de “ataques contínuos às atividades comerciais digitais de empresas americanas”, a pressão sobre a posição do Brasil em relação à regulamentação das tecnologias é visível na investigação aberta no âmbito da Secção 301.

Ambas as ações ocorreram depois que a Suprema Corte do país concluiu, em um caso antigo, que o artigo que limita a responsabilidade dos intermediários de internet pela distribuição de conteúdos de terceiros no Marco Civil da Internet é parcialmente inconstitucional. A decisão visa estabelecer um regime de responsabilidade diferenciado, mas gera um ambiente de maior insegurança jurídica para as empresas. Entre as demandas das empresas tecnológicas estão a revisão dessa decisão, assim como a oferta de benefícios fiscais para a instalação de seus centros de dados no país.

Entre a resistência e a construção de alternativas

O impacto negativo da política externa de Trump é visível e assim continuará por muitos anos. No caso da América Latina, tem o potencial de comprometer a sustentabilidade de economias já frágeis e deixar desprotegidos os setores sociais que mais precisam de apoio. Isso sem falar no possível atraso em matéria de desenvolvimento, fundamental para superar as desigualdades persistentes, tanto a nível local como global. O potencial da China em preencher o vazio deixado pelos EUA em relação a investimentos e geração de riqueza é, certamente, um incentivo para os governos da região. O país vem buscando projetar seu poder também em espaços multilaterais desacreditados pela diplomacia estadounidense, embora persistam dúvidas sobre seu compromisso efetivo com uma agenda de direitos humanos.

Confiar apenas numa virada para a China como força capaz de reequilibrar as relações internacionais parece ser um equívoco. É fundamental que os países da região consigam aproveitar a oportunidade sem replicar um novo modelo de dependência. Embora a urgência possa exigir contrapesos económicos e de desenvolvimento, se o apoio internacional, seja da China ou da Europa, não vier acompanhado de um compromisso real com a defesa dos direitos, estaríamos apenas mudando a origem da exploração.

Nesse sentido, o fortalecimento da agenda tecnológica em grupos como o G20 e o BRICS pode representar uma oportunidade para sustentar compromissos já existentes com a justiça e os direitos humanos, inclusive em sua relação com as tecnologias. A recente declaração dos líderes do BRICS sobre inteligência artificial mostra que ainda há espaço para uma perspectiva de desenvolvimento ancorada na garantia dos direitos fundamentais. Resta ver como esses compromissos serão efetivados nas conversas atuais e como esses países resistirão à pressão de Trump, que parece tê-los na mira.